Método pioneiro de hemodiálise em Brasília ganha adeptos no mundo

Há 16 anos, quando se propuseram a inverter a ordem médica vigente em tratamento renal, os nefrologistas brasilienses Istênio Pascoal e Juliane Lauar não tiveram muita fé da comunidade especializada.

A ideia, ainda em 2002, era desafiar o protocolo dominante em hemodiálise – três sessões de quatro horas cada, semanalmente – e testar um sistema de visitas diárias dos pacientes às clínicas: seis ou sete vezes por semana, mas com duração mais curta, de apenas duas horas.

Não era nada inédito. O método já havia sido proposto no fim dos anos 1960 na Europa, mas nunca vingou, porque convencer pacientes a visitarem um ambulatório todos os dias e justificar o aumento dos custos a financiadores tornavam a proposta inviável. Quase seis décadas depois, no entanto, o time brasiliense não só provou o contrário, como tem deixado boquiaberto o corpo científico internacional, com os resultados obtidos no bem-estar dos usuários do serviço e em gestão de recursos na sua clínica, em Brasília.

“Com sete apresentações em congressos internacionais de nefrologia, a equipe embarca em outubro para os Estados Unidos a fim de realizar a oitava, com expectativas de quebrar novos paradigmas em tratamento renal.”

Pelas contas da Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 10% da população mundial têm algum tipo de doença renal crônica. No Brasil, diz o Ministério da Saúde, são 100 mil indivíduos, sendo 85% dependentes da rede pública, e o resto – 25 mil – de clínicas particulares. A equipe de Pascoal e Lauar atende 70 deles, o correspondente a 0,07% do total de casos renais crônicos do país. Número suficiente para registrar o feito entre médicos mundo afora.

A rotina dos pacientes na clínica da Asa Sul – recentemente, a equipe inaugurou uma filial também na Asa Norte – em quase nada se parece com a do restante dos ambulatórios de hemodiálise. Uma vez por dia, durante duas horas, eles ficam acoplados aos filtros que purificam seu sangue. Chegam e saem de transporte particular fornecido pelo estabelecimento.

De lá, seguem a vida como se nunca tivessem recebido um diagnóstico grave como o de comprometimento total da função do rim. Mesmo com sessões diárias e tratamento especial, com direito a lanchinhos temáticos com comidas típicas dos países rivais do Brasil em dias de jogos da Copa, nenhum paciente ali desembolsa um centavo a mais do que a mensalidade paga aos respectivos planos de saúde. E é esse o maior trunfo de Pascoal, a seu ver.

Pergunte ao seu plano
“Quem paga por isso?”, provoca Pascoal ao falar sobre o mais novo trabalho científico da clínica, que leva o questionamento no título. A resposta parece óbvia: os próprios convênios. O pulo do gato da equipe foi convencê-los a fazer isso apenas redistribuindo custos.

“Segundo números nacionais, 40% dos custos de um paciente dialítico são gastos em hospitais, quando ele é internado”, explica Pascoal.

Na prática, significa dizer que o método tradicional de diálise, com três sessões, deixa às clínicas não mais de 60% do dinheiro empenhado pelas operadoras em cada um de seus clientes renais. A técnica aplicada no DF pela equipe do especialista não apenas diminuiu a mortalidade dos pacientes e suas taxas de internação como também garantiu tudo isso com o mesmo valor antes depositado em diárias frias de unidades de terapia intensiva.

Isso, dizem, é consequência do método. No protocolo de três vezes por semana, o paciente fica necessariamente, em algum momento, 72 horas seguidas sem diálise. Uma pessoa que visita o ambulatório às segundas, quartas e sextas-feiras, por exemplo, passa o final de semana inteiro à deriva, até a próxima sessão, na semana seguinte.

Como consequência, 70% das mortes por complicações renais nesses pacientes acontecem na segunda-feira. “E muitas durante a primeira diálise da semana, porque é uma sessão intensa, para corrigir um deficit de três dias inteiros”, ilustra a nefrologista Juliane Lauar.

Para inverter a lógica e testar quantas dessas complicações poderiam ser evitadas se esse intervalo longe dos filtros artificiais fosse menor, a clínica passou a recrutar, em 2002, alguns poucos pacientes para passarem ao esquema chamado “hemodiálise curta diária”. Como os custos de uma sessão de duas horas são os mesmos de uma de quatro, a equipe dos médicos aceitou autofinanciar-se por um ano para ver o que acontecia a esses indivíduos.

“No fim das contas, o custo da diálise dobrou, mas o custo total desse paciente se mostrou mais vantajoso, porque ele passou a se internar menos.” – Istênio Pascoal, nefrologista

Bem menos. Desde 2006, quando a Clínica Brasiliense de Nefrologia & Diálise passou a oferecer exclusivamente o método de diálise diária, negligenciado no mundo, os números nos relatórios da equipe só melhoraram. Enquanto um paciente dialítico comum se interna em média duas vezes ao ano, com período aproximado total de 12 dias, os de Pascoal têm uma internação a cada 30 meses – 0,4 ao ano –, com não mais do que 2,97 dias no hospital.

Mosaico de práticas

O resultado é mérito de uma série de medidas conjuntas, na avaliação dos especialistas. “O rim de uma pessoa saudável funciona 24 horas por dia. Em tese, fazer sessões curtas todos os dias é algo mais próximo do natural que dividir as sessões em três vezes por semana”, argumenta Juliane Lauar. A taxa de aderência dos pacientes ao tratamento também conta para os números positivos.

Hoje, eles possuem meios de transporte próprios que levam e buscam o paciente em casa ou no trabalho, antes e depois de cada sessão. O luxo, além de conforto aos dialíticos, garante também menos episódios de complicações e menores gastos desnecessários com alocação de filtros a usuários que não vão comparecer a uma determinada sessão.

“A resposta, então, é esta: a redução na taxa de internação é o que banca o custo da diálise diária.” – Istênio Pascoal, nefrologista e sócio da Clínica Brasiliense de Nefrologia & Diálise. Para se ter uma ideia, enquanto o índice de faltas esperado, conforme estatísticas mundiais, é de 7% a 12%, na clínica brasiliense ele fica em 1,47%. “Quando apresento esse número em congressos, todo mundo quer saber como eu consigo isso, porque é muito abaixo da média”, sublinha Pascoal.

Outro diferencial foi passar a abrir a clínica também aos domingos, em vez de no horário comercial padrão – algo que, de acordo com os sócios, é inédito no mundo. A medida, argumentam, não apenas garante socorro em casos de emergências, também ajuda a gerenciar faltas: se um paciente não pôde ou não quis comparecer à sessão em um dia de semana, pode repor a falta no fim de semana sem que isso traga riscos à sua saúde.

Pelos seus números, 30% dos pacientes utilizam os filtros da clínica aos domingos. Entre eles, 15% dialisam sete vezes por semana, por escolha, e outros 15% porque preferem outro dia livre ao domingo. “Muitos querem um dia da semana para resolver problemas e burocracias, e outros preferem o domingo porque é um dia tranquilo, sem compromissos”, diz Juliane Lauar. “O que dizemos sempre aos pacientes é que eles não devem deixar de fazer nada por causa da hemodiálise. Vida normal”, continua.

O mosaico de conhecimentos testado e melhorado ao longo dos anos tem aumentado o prestígio dos especialistas brasilienses mundo afora. Em fevereiro passado, a revista especializada Nephrology News & Issues destacou o trabalho de Pascoal como uma iniciativa que pode fazer a diferença no tratamento de hemodiálise.

“Pensar fora da caixa pode fazer uma diferença geral e na satisfação dos pacientes”, resenhou o editorial. “Sigam a liderança de Guy Laurent, Bernard Charra [ambos franceses] e Istênio Pascoal. Há sempre um jeito melhor”, finaliza.

Fonte: Metrópoles